quinta-feira, 21 de junho de 2018

Das amizades que se vão







Penso que cada vez que nos afastamos de um amigo queremos nos afastar de nós mesmos. E por amigo aqui quero dizer aquela pessoa com quem você realmente estabeleceu uma conexão profunda, daquelas de passar madrugadas divagando sobre a vida, de saber que a pessoa não está bem e ligar na hora certa, de querer ligar, enfim. Estas são aquelas pessoas de quem não escondemos verdades. Com quem somos nós, escarrados, ali. 


A vida, em suas voltas, nos afasta de muitos amigos assim. Uma transferência, um trabalho, a rotina. Muitas vezes quando os reencontramos é aquele velho clichê: o tempo não passou; Mas quando nos afastamos voluntariamente de alguém que nos conhece pelo avesso, diferentemente de uma relação amorosa/romântica, onde as vezes o amor acaba, é porque algo ali está nos incomodando muito. E, sabendo que é uma pessoa com quem temos uma relação profunda, podemos dizer o que nos incomoda no outro. Esperar mudanças. Quebrar rotinas. Mas se nos afastamos sem tentar quaisquer mudanças é porque na verdade o que está nos incomodando muito somos nós mesmos. Porque ao lado deles sabemos que nossas fraquezas são feridas expostas, nossas vulnerabilidades serão lembradas. E mesmo que isso seja bom, há aqueles momentos em que não suportamos nos ver. É como se o outro carregasse um espelho, mesmo que inconscientemente. Então podemos seguir nossa vida nos ocultando de nós mesmos. Mas não ao lado de alguém com quem não conseguimos nos esconder. 

Acredito que seja uma das coisas mais tristes perder um amigo assim. Seja em qual lado for: sendo a pessoa que quer se esconder, sendo a pessoa que foi afastada. Um pouco como diz o poeta: " Eu suportaria, não sem dor, que morressem todos os meus amores. Mas nunca que morressem todos os meus amigos" Cada amigo que se vai, ou que se deixa ir, é um pedaço nosso, bem grande, que morre junto. Um pedaço de nosso jeito, um pedaço de nossa crença na possibilidade do encontro, um pouco de risadas que se enterram, um pouco de uma face nossa que não vai mais existir.









quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Hannah e eu

     Nunca gostei de cachorros. Não da maneira como as outras pessoas costumam gostar. Beijar no focinho, abraçar, brincar. Provavelmente reflexo de uma educação de apartamento.
     Hoje a Hannah está sentada nos meus pés, olhando ao redor, como que monta guarda. Se distrai apenas para me olhar com aqueles olhos grandes e infantis, pedindo que o cafuné não pare.
     Chegou aqui já uma senhora, mas as atitudes são de um filhote. Já veio com este nome, que eu instantaneamente associei a Hannah Arendt.
     Ainda não gosto de cachorros.Mas criamos uma relação silenciosa, Hannah e eu. Quando ela estava prenha, sonhei com seus filhotes na noite anterior ao nascimento. E a alegria que senti ao vê-los no dia seguinte foi das maiores que já senti.Dois pequeninos serer na palma da mão de meu filho. E a Hannah com uma inegável expressão de cansaço e orgulho.
     Não gosto de cachorros. A Hannah, entretanto, soube me fazer ama-la. E aceita esse meu amor silencioso e quieto. Me retribuindo um amor incontido, barulhento e encantador.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Sobre o amor

Amor é doença. Como daquelas doenças que queremos ter para faltar à escola quando somos crianças. Aquelas tardes em que ficávamos assistindo tv e comendo besteiras porque não podíamos ir para aula. Ideal era que chovesse.E que passasse Indiana Jones.
Amor é este tipo de doença. Nos esforçamos para ter, por mais que aconteça de repente. Queremos daquele sofrimento. Como que para lembrar dos músculos que temos. Internos.

sábado, 5 de abril de 2014



A música era como aquelas que os filmes usam para definir sensações oníricas. Vejam só.

Ela ajeitava a cabeça na almofada. Como se aquela almofada fosse desde sempre sua.
O resto do corpo não. Era estranhamento.

Um corpo fora do corpo. Mas no exato lugar onde o corpo desejaria estar, se soubesse onde estava.

Falava-se sobre tiranias. Previa-se um golpe. Golpes trazem consigo mortes.
Ela sabia e ainda assim aninhava-se na almofada.

Gatos rodeavam. Ela sabia-se amiga deles. Lembranças de um passado (remoto?)

Não havia lua. Era frio. Todos acabavam numa estrada. Envoltos a fumaça de poucos cigarros.

Aguardariam tranquilamente o golpe.






segunda-feira, 28 de maio de 2012

Life is what happens to you while you´re busy making other plans

Poderia usar aquela frase clichê e dizer: Aproveite, eles crescem logo!
Se você é "mãe-de-primeira-viagem" como eu, já ouviu esta frase diversas vezes.
Não, você nunca aproveitará o suficiente. E eu não direi para que você aproveite. Direi antes: Registre, pois tudo se perderá logo! Aquele sorriso que você se derreteu e achou que seria repetido para uma posterior foto, nunca mais será dado. Virão outros, mais ou menos sedutores que aquele, mas aquele , nunca mais. O rosto antes banguela, se encherá de dentes antes que ele ou você possam dizer "x".
Não, você nunca aproveitará o suficiente. Os seis primeiros meses passam de modo que você, ao final, sinta que passou o tempo todo cansada, com sono, atarefada. Uma imagem bem diferente daquela que se faz quando grávida. Imaginando um longo e idílico éden, com longos momentos de contemplação mútua. Isso não acontece. Ao menos não na frequência que imaginamos. Não no modo como imaginamos. Nos momentos livres se deseja comer, dormir, cozinhar um prato sofisticadissimo que nunca faríamos, mas que agora, que não temos tempo, invocamos que temos que fazer.
Um nenem em casa é uma delicia. As pessoas amam. De longe. E é você, aproveitando cada minuto, que tem que sair no meio da parte mais interessante da conversa para dar de mamar, para trocar, para fazer dormir. Quando você voltar os sorrisos e as risadas já terão cessado, o assunto terá morrido e o grupo inclusive já terá se desfeito. Sim. Mas foi você quem viu a primeira tentativa dele de virar para o lado, enquanto todos na sala falavam pela trigésima vez sobre o filme do ano. Foi você que viu ele tentando falar A pela primeira vez. Aproveite, eles crescem rápido.
E você, esquecerá rápido. Daqueles momentos que você julgou mais significativos, no meio da noite. Você esquecerá. E se odiará por isso. Esquecerá como foi o primeiro banho. Em qual dia ele reclamou do sol daquele jeito engraçado. Esquecerá quando ele tomou sol e viu a chuva pela primeira vez. Esquecerá que ele olhou a chuva caindo e procurava no céu a origem daquilo. Esquecerá dos momentos em que ele brincava com o  pai e de como o  pai ficava engraçado, e do modo como os dois combinavam tão bem.
Registrar! Mas se o impermanente é inregistrável. O que apenas é sentido é inviável em palavras. É imperceptível tactilmente. Fotos não bastarão, filmagens trarão apenas sombras de toda a plenitude que se sente algumas (tantas) vezes, por alguns segundos, sendo mãe. Naqueles momentos que esquecemos que devemos aproveitar.

domingo, 4 de setembro de 2011


Ensaio sobre meu pai.
Pensei em fazer um poema que falasse das mãos de meu pai e para isso busquei Vinicius e Sabino e toda uma retórica que não poderia dizer por mim mesma com a singeleza e a ternura que deveria ser. Não conseguindo reproduzir, não querendo copiar. As mãos de meu pai são rugosas hoje, grossas, com unhas perfeitamente alinhadas e sempre me seguraram com um dedo só para atravessar todas as ruas e abriu minha garganta na longa infância das inflamações.
  Pensei em falar sobre a força de meu pai. E aí não encontraria em meu repertório épico autores nem palavras, menos estrofes e versos. A força do meu pai é conclusiva, concentrada e redimida. Mas como dizer. Histórias de mocinho defendendo a mocinha dos bandidos, de charme de faroeste. Força de super-herói, que carrega qualquer coisa, que carrega tronco, segura bois, suporta distâncias melhor do que eu.
Pensei em falar da ternura que vem dos olhos de meu pai. Inexpressa em palavras, muda e silenciosa, como a de meu avô. Uma ternura de gestos. Uma ternura de cuidado que circula e adoça; alimenta e faz rir. Na distância faz chorar, de saudade do olhar.
Poderia falar da incrível capacidade sonora de meu pai e da banda que ainda vamos montar assim que aprendermos a tocar os diversos instrumentos que vamos colecionando. Do passado boêmio de um pai que não era pai ainda.
Poderia contar causos, histórias, lendas e mitos. Poderia contar que ele é quieto, silencioso e observador. Que faz regimes doidos e exercícios puxados. Ou que agora ele gosta de charutos.  Poderia contar que minha mãe o ama ainda mais que eu. Poderia contar que todos o amam quando o vêem. Mas  mantenho o texto assim, mais para calado, como ele. Ponto por ponto. Tal como ele, quase reticências no final.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Do mundo do esquecimento

Ela corria com medo das nuvens, nos dias de chuva e de sol também.
Acreditava que aquele tufos gigantes de algodão a perseguiam, por onde quer que fosse. Mesmo se espalhados, mesmo se fios.
Era uma menina corajosa, todos os dias apagava a luz para dormir e os monstros que infestavam o quarto e os armários, elas os botava pra correr. Lia à noite livros de detetives, de fantasmas, sabia-os de cor.Sonhava pesadelos, mas nunca chorou de medo, nem gritou de susto.
Mas corria das nuvens. Se escondia sob marquises, na rua. Entrava nas lojas, fechava as janelas.
No alto dos seus sete anos, a altura das nuvens. Lá em cima, vigilantes.Quando ela invadia o quintal alheio para pegar a boneca da vizinha. Não deixava pistas e fingia que o cão passara por lá. Os restos de uma boneca velha para ninguém dar por falta. Mas aquele peso lá de cima não a deixava em paz. Tal qual juiz, tal qual um deus que a mãe dizia que ia até o banheiro, não se descuidasse que ele via mal-criação. Ela não entedia deus. Entendia nuvens.
Um dia o pai trouxe uma enciclopédia para casa. Dessas de couro, vermelha, pesada e poerenta. Ela começou a devora-la metodicamente, pelo A. Não demorou muito para resolver ser cientista quando crescesse. Aos oito anos nomeou o cão de Nimbus. E fazia análises de insetos encontrados no jardim. Fez o pai comprar lupas, pinças e um jogo de laboratório mirim.
Aos doze seu medo passou. Bom, aos doze ela esqueceu. Um menino de óculos mudou para
sua sala. E eles conversavam sobre dinossauros. E sobre pirâmides. E sobre a coleção de aranhas
e grilos de cada um. E ela não lembrou de seu medo num dia nublado em que eles tomaram o
primeiro sorvete juntos. Nem no dia nublado em que ele lhe roubou um beijo tímido.
E, depois de mais um tempo, esqueceu que queria ser cientista, esqueceu a enciclopédia numa estante
e largou seu kit de laboratório num canto do quintal. E depois também esqueceu do nome do menino de
óculos.Esqueceu o sabor do sorvete que tomou e esqueceu que tinha um cachorro chamado
Nimbus.